sábado, 27 de junho de 2009

Um laço de fita


Menina terrível, tinha convencido a irmã de levá-la embora para o Rio e tinha de ser naquele fim-de-semana. O plano era fingir que iria acompanhar Joana à estação mas embarcariam juntas. Por conta disso na noite anterior Vitória não conseguiu dormir. Levantou-se antes de todos, pegou sua bolsa pequena e colocou dentro da mala da irmã. A casa foi acordando aos poucos. O cheiro do café da mamãe, o bom dia do papai e Joana estava pronta para partir. O pai avisou de surpresa que também iria à estação. Quando ouviu o coração foi na boca. Ficou tensa e quase não conseguiu disfarçar o medo, a raiva e a excitação. A irmã quis cancelar a façanha com o olhar, mas não encontrou os olhos de Vitória.

A locomotiva que vinha de Porciúncula chegou fazendo seu esporro habitual. Na plataforma da estação havia um pai, uma mãe, a irmã e Vitória que não parava de roer as unhas. Era esperta a bichinha, ia acabar dando um jeito. Foi aí que Joana estava entrando no vagão e Vitória tomou a mala de sua mão dizendo que ia ajudar a colocá-la dentro do trem. Joana arregalou os olhos mas consentiu. O pai levantou os olhos mas não disse palavra. Lá dentro Joana já havia se acomodado e a caçula estava de pé no corredor conversando. Fingir era algo que Vitória fazia muito bem. Seguiram-se alguns apitos e Vitória não descia. Estava distraída a pobrezinha, se despedindo da irmã. O velho gritava por ela lá fora - Desce menina - e vendo que a menina não ia descer por conta própria, entrou na composição. Ao ver Sr. Francisco lá dentro Vitória pegou a correr. Foi uma loucura. Uma perseguição dentro daquele trem estreito. Quando chegaram no último vagão de passageiros Vitória deu um jeito de passar por debaixo das pernas do velho. A correria só acabou quando o bilheteiro parou Sr. Francisco e disse que o trem não podia mais esperar. Vendo que a menina não descia, desceu ele.

O trem partiu e da janela Vitória via os pais com um olhar de cachorro que mordeu o dono. O pai de costas caminhando sob a plataforma e a mãe chorando plantada confusa segurando um laço de fita que a filha miúda tinha deixado cair.

terça-feira, 23 de junho de 2009

É isso aí! Vida que segue.


Eles se reencontraram dez anos depois num supermercado na zona norte da cidade. Estavam no setor de higiene pessoal. Ele colocava no carrinho uma embalagem de oito rolos de papel higiênico e ela segurava um pacote de absorvente. Ficaram ali um diante do outro. Tirando pelos poucos fios de cabelos grisalhos ele não havia mudado muito. Já ela havia feito pender as voluptuosas macãs do rosto, deixando as bochechas um pouco flácidas. Conversaram sobre o passado e o presente. Riram, lamentaram e se parabenizaram. Descobriram que estavam morando perto um do outro. Falaram sobre o bairro, daí para a política. Não falaram do futuro. Quando qualquer coisa remetia a isso faziam silêncio. Como se fazer planos fosse proibido. Se despediram quando iam para o caixa. Ela tinha menos de dez volumes e ele um carrinho cheio de compras. Ficaram entaladas algumas perguntas. Teria sido melhor assim. Trocaram olhares e sorrisos, cada um na sua fila. Ela preferiu não comentar mas contou três garrafas de vodka no carrinho dele. Ele também não disse nada mas gostaria de vê-la novamente.

domingo, 21 de junho de 2009

Memória d'água


A tampa da panela passou raspando na cabeça dele, bateu na parede da cozinha e caiu no chão fazendo um estardalhaço. Filho da puta! Se eu te pego! - Jeremias corria para o quintal rindo, descalço. Deu a volta na casa e foi pra rua. Os irmãos na janela da sala riam dele. O pai na janela do quarto xingava ele balançando um metro de fio em uma das mãos. Mas Jeremias não podia mais ouvir suas vozes, estava longe socando os paralelepípedos da rua com as solas dos pés. Corria mesmo, como se fosse levantar voo. Gostava da sensação de velocidade e isso ficava mais emocionante depois de ter feito arte e estar ameaçado de uma surra. Ele ainda não sabia mas teria sensação parecida anos mais tarde na capital do país ao assistir as acrobacias aéreas de aviões de combate num ano de guerra.
Antes dele chegar na praça o céu desabou. Ao invés de irem pra dentro de suas casas as crianças saiam correndo pra rua pulando, gritando, girando e a chuva caindo. A cada trovoada a molecada fazia coro. Os menores ficaram ali sapateando nas poças d'água das calçadas mas os meninos mais velhos acharam de ir para o rio.
O rio Muriaé corta a cidade com força. É um rio largo, agressivo e traiçoeiro. Jeremias já viu morrerem afogados nele pelo menos meia dúzia de primos. Os corpos nunca foram encontrados. Ainda assim lá estavam os meninos brincando num poço perto da ponte quando ouviram um estrondo muito forte. Era maior que uma trovoada, como se um raio tivesse atingido alguma coisa. Pararam de repente, olharam em volta, olharam uns para os outros e tudo bem. Voltaram para as guerrinhas de esguicho e para os saltos do banco de areia. A festa só acabaria com o fim da chuva.
Quando Jeremias chegou em casa no fim da tarde havia um silêncio cabreiro. Ele só ouvia o barulho que fazia a goteira quando caía na soleira da porta da sala. Caminhava bem devagar do portão para a porta da cozinha que ficava nos fundos. Sua mãe devia estar na igreja com seus irmãos e seu pai... Eu disse que ia te pegar, seu moleque! - Jeremias não teve tempo de correr. Ouviu o fio zunir e logo estourar numa lanhada ardida em suas costas. Foi uma sequência de chicotadas enquanto ele caía, levantava, tropeçava, gritava e corria pra dentro de casa. Se trancou na despensa chorando alto. Precisava convencer o pai de que já havia apanhado o bastante. Passados alguns minutos e parecia que o havia convencido pois lá fora fazia silêncio. Lá dentro Jeremias soluçava fingido sentado no chão úmido, joelhos dobrados, braços cruzados sobre os joelhos, queixo apoiado sobre os braços e o olhar fixo no vazio das paredes sujas. Ficaria assim até a chegada da mãe, da igreja, cheia do Espírito Santo.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Ritalina


- Não, eu não sou filho do Denny de Vitto.
- Mas você parece muito com ele.
- O Denny de Vitto deve ter idade pra ser meu avô.
- Hum! Você parece mais velho.
- Senhor, em que eu posso ajudar.
- Eu preciso de ritalina.
- Mas aqui é uma locadora de vídeo.
- Ah! Sim. Então vocês tem "Duas ou três coisas que sei dela", do Godard?
- Temos sim, mas só com legenda em inglês.
- Pois é, eu preferiria em mandarim. Sabe, preciso praticar o idioma.
- Posso lhe ajudar em mais alguma coisa?
- Pode sim. Que ônibus eu pego aqui para o Morumbi?
- Senhor, estamos no Rio de Janeiro.
- Bem que eu notei algo estranho. Em que ano nós estamos?
- 2009.
- Ah! Sim. Então eu vou querer um mixto quente de queijo minas e uma xícara de café, por favor.

domingo, 14 de junho de 2009

Entrée


Caminhava zonzo pela rua escura. Alguma coisa tinha acontecido, a cabeça doía, a escuridão parecia muito clara para os meus olhos, os bolsos estavam vazios e na boca um gosto de sangue. Tropecei e caí bueiro abaixo. Não havia ratos ao redor. Levantei sentindo o cheiro dos restos da cidade. O túnel era grande, então eu podia caminhar em pé, administrando a tontura, a dor na cabeça, a pouca visibilidade e aquele cheiro. Um vulto, como um clarão, cruzou meu caminho. Percebi um cruzamento de túneis. Resolvi virar a esquerda seguindo o vulto, dei alguns passos e bati com a cara na parede. Olhei pra cima e vi uma tampa que parecia dar para a rua. Levantei a tampa e... acordei.

Levantei da cama meio zonzo, o quarto estava escuro e eu ouvia gritos e gemidos. Alguma coisa tinha acontecido...

sábado, 13 de junho de 2009

Pronto falei, perdi o medo!


Existem pessoas com tão fracas convicções que tapam os ouvidos a novas idéias e concepções temendo perder a ilusão de que acreditam em algo. Melhor é não ter resposta pra tudo e ser convicto de que tudo pode acontecer num universo infinito do que ser fervoroso nas limitações da alma e na pretensão de se saber sobre todas as coisas.

sábado, 6 de junho de 2009

Palavra da semana

vezo
ve.zo(ê) sm (lat vitiu)
1 Costume censurável ou vicioso.
2 pop Qualquer hábito ou costume. Pl: vezos (ê)

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Genesis


Foi como se eu de repente passasse a fazer parte de tudo o que via. Como se eu pudesse sentir a inocência das plantas, voasse na velocidade dos ventos, tivesse a força da Terra e sentisse a liberdade de um imenso Universo.