domingo, 21 de junho de 2009

Memória d'água


A tampa da panela passou raspando na cabeça dele, bateu na parede da cozinha e caiu no chão fazendo um estardalhaço. Filho da puta! Se eu te pego! - Jeremias corria para o quintal rindo, descalço. Deu a volta na casa e foi pra rua. Os irmãos na janela da sala riam dele. O pai na janela do quarto xingava ele balançando um metro de fio em uma das mãos. Mas Jeremias não podia mais ouvir suas vozes, estava longe socando os paralelepípedos da rua com as solas dos pés. Corria mesmo, como se fosse levantar voo. Gostava da sensação de velocidade e isso ficava mais emocionante depois de ter feito arte e estar ameaçado de uma surra. Ele ainda não sabia mas teria sensação parecida anos mais tarde na capital do país ao assistir as acrobacias aéreas de aviões de combate num ano de guerra.
Antes dele chegar na praça o céu desabou. Ao invés de irem pra dentro de suas casas as crianças saiam correndo pra rua pulando, gritando, girando e a chuva caindo. A cada trovoada a molecada fazia coro. Os menores ficaram ali sapateando nas poças d'água das calçadas mas os meninos mais velhos acharam de ir para o rio.
O rio Muriaé corta a cidade com força. É um rio largo, agressivo e traiçoeiro. Jeremias já viu morrerem afogados nele pelo menos meia dúzia de primos. Os corpos nunca foram encontrados. Ainda assim lá estavam os meninos brincando num poço perto da ponte quando ouviram um estrondo muito forte. Era maior que uma trovoada, como se um raio tivesse atingido alguma coisa. Pararam de repente, olharam em volta, olharam uns para os outros e tudo bem. Voltaram para as guerrinhas de esguicho e para os saltos do banco de areia. A festa só acabaria com o fim da chuva.
Quando Jeremias chegou em casa no fim da tarde havia um silêncio cabreiro. Ele só ouvia o barulho que fazia a goteira quando caía na soleira da porta da sala. Caminhava bem devagar do portão para a porta da cozinha que ficava nos fundos. Sua mãe devia estar na igreja com seus irmãos e seu pai... Eu disse que ia te pegar, seu moleque! - Jeremias não teve tempo de correr. Ouviu o fio zunir e logo estourar numa lanhada ardida em suas costas. Foi uma sequência de chicotadas enquanto ele caía, levantava, tropeçava, gritava e corria pra dentro de casa. Se trancou na despensa chorando alto. Precisava convencer o pai de que já havia apanhado o bastante. Passados alguns minutos e parecia que o havia convencido pois lá fora fazia silêncio. Lá dentro Jeremias soluçava fingido sentado no chão úmido, joelhos dobrados, braços cruzados sobre os joelhos, queixo apoiado sobre os braços e o olhar fixo no vazio das paredes sujas. Ficaria assim até a chegada da mãe, da igreja, cheia do Espírito Santo.

3 comentários:

Dré Tostes disse...

só agora fui perceber que esse blog é seu!
isso, por causa da imagem que você usava no perfil do orkut!

Abraço!

letra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cristina Caetano disse...

Oi, gostei demais do conto.

E obrigada! :)

Beijinhos